Acordei com a sensação estranha de que meu travesseiro cheirava a lodo e ao mesmo tempo eu me sentia bem, me sentia, vitorioso, meio confuso também... Não era um cheiro ruim, entendam bem. Era aquele aroma de terra molhada onde a vida acontece fervilhando, escondida sob a superfície.
Tinha acabado de sonhar com um jacaré e um sapo. Juntos... Na minha sala cheia d'água... Aí já viu né... Corri para o onipresente "Livro dos Sonhos" da internet, que é sem dúvidas... O oráculo moderno das nossas neuroses matinais.
O veredito saltou na tela do celular com a sutileza de um neon piscante... "Jacaré e sapo juntos indicam domínio das artes da sedução e uso de atrativos físicos para obter aprovação do sexo oposto."
Caramba... Eu congelei na frente da tela do celular, corri para me olhar no espelho. Olhei para o meu reflexo. Cabelo amassado do lado esquerdo, olheiras de quem maratonou série ruim, e ainda usava uma camiseta que você ganha de quem viaja para as praias afrodisíacas do nordeste e te traz uma de presente com dizeres “Eu ❤️ amo Maceió” e você nunca vai usar ela para sair na rua.
Naquele instante nela, deveria estar escrito em nome da biologia evolutiva, ... “O Don Juan do pântano”...
Mas para escrever essa crônica exigiu uma investigação. Se o subconsciente diz que sou um mestre da sedução anfíbia e reptiliana, quem sou eu para discordar de Freud e seus zoológicos mentais? Comecei a analisar a lógica da coisa. E, surpreendentemente, ela fazia sentido.
O Jacaré não é o sedutor clássico. Ele não é o pavão que abre as asas como um leque e dança. O jacaré é o mestre do timing. É a sedução de sangue frio. Ele fica ali, boiando, como quem não quer nada, parecendo um tronco inofensivo, apenas dois olhos vidrados na superfície. Ele não corre atrás, ele atrai pela curiosidade ou pela falsa sensação de segurança. A "arte da sedução" do jacaré é a paciência. É saber que, se você ficar parado na posição certa, com o sorriso certo, aquela boca cheia de dentes, a presa ou o amor da sua vida acaba vindo beber água na sua margem.
Já o Sapo... ah, o sapo é o malandro da história. Se o jacaré vence pelo perigo estático, o sapo vence pela lábia. É o coaxar. É a conversa mole no ouvido. O sapo tem aquela pele úmida, meio viscosa, que a gente finge que não gosta, mas que carrega uma textura de realidade. E tem, claro, o mito do feitiço, que o príncipe virou sapo. A sedução do sapo reside na promessa do o que eu posso vir a ser. Ele usa a sua fisicalidade, o papo inchado, o pulo desengonçado, para chamar a atenção. É o sujeito que não é bonito, mas é "simpático", que ganha no cansaço e na insistência.
O sonho estava me dizendo, então, que eu opero nesse cruzamento perigoso entre a mordida fatal e o coaxar melódico.
Saí de casa me sentindo diferente… Entrei na padaria não como o cliente que pede uma "média e pão na chapa", mas como o predador do balcão. Estufei o peito, meu momento sapo, e lancei um olhar fixo e penetrante para a atendente meu momento jacaré.
- Vai querer o de sempre ? Ela perguntou, sem nem olhar no meu rosto, matando minha performance reptiliana.
- Hoje não, respondi, tentando colocar uma voz grave e sedutora, um coaxar de barítono. - Hoje eu quero um suco de laranja sem açúcar, e um sonho. Notaram né, que merda de pedido foi o meu, suco sem açúcar e um sonho ultradoce, mas tudo bem, estava no meu momento de sedução. Ela me entregou o suco, e um saquinho de papel com o doce cheio de creme.
Saí rindo de mim mesmo, ainda mordendo o açúcar do sonho. Talvez o livro dos sonhos exagerou na parte do "domínio formal e científico dos sonhos, e durante o estudo da onirologia, os caras viajaram na maionese.
Ou talvez a sedução real seja exatamente isso, saber que a gente é meio bicho, meio desajeitado, que às vezes a gente precisa ficar quieto como um tronco e às vezes precisa fazer barulho pra ser notado.
E no resumo da ópera… No fim das contas, a atração física que o sonho mencionava não era sobre ter o corpo malhado com barriga de tanquinho. Era sobre ter a casca grossa, para aguentar os foras e a pele fria, para não esquentar a cabeça.
Cá, com meus botões eu pensei… No pântano das relações modernas, quem tem paciência de jacaré e lábia de sapo, de fato, nunca ficam muito tempo sem se dar bem na arte do amor, ou seja nunca morrem de fome... Se é que você entendeu…
Por Alfredo Guilherme

10 comentários:
Texto delicioso, daqueles que fazem a gente querer ter sonhos esquisitos só pra ver se também ganhamos superpoderes emocionais. Adorei.
Ri alto aqui lendo kkkk. O momento ‘predador do balcão’ foi foda. E ainda assim a crônica bate numa verdade desconfortável a gente leva tão a sério nossas inseguranças que até um sonho tenta nos dar coragem.
Esse texto tem cheiro de chuva, de barro e de ironia de boa qualidade. E a conclusão é perfeita meu caro amigo ninguém precisa ser malhadão, só precisa sobreviver ao pântano emocional da vida adulta.
kkkkkk.... Eu adoro quando você cria filosofia a partir de detalhes banais. Quem diria que um pedido de suco sem açúcar e um sonho ultradoce resumiriam a dualidade humana.
Nunca pensei que um jacaré e um sapo pudessem explicar tão bem as minhas tentativas e falhas de flerte na vida real kkkkk
Amei como você fez do jacaré um filósofo da paciência e do sapo um poeta da insistência. Talvez o amor seja isso mesmo essa doideira uma mistura de bicho preguiçoso com bicho falante.kkkkkk
Parabéns, Alfredo. Você tem essa habilidade rara de transformar vulnerabilidade em humor e humor em insight.
Essa crônica é praticamente um manual de sobrevivência amorosa do século. Paciência reptiliana + conversa anfíbia = talvez, com sorte, ser amado por muito e muitos anos.
Ah, Alfredo… quando a gente chega na casa dos sessenta, entende o valor da paciência reptiliana. O amor que fica não é o que corre, é o que paira. Seu texto diz isso com uma delicadeza rara.
Já tive meus dias de sapo ruidoso e meus anos de jacaré silencioso. Hoje, apenas observo. Mas seu texto me fez lembrar que, mesmo quando o corpo vira barro, o desejo continua sendo uma espécie de música.
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