Fim de tarde no tom quente âmbar. Aos poucos, vai escurecendo com vento morno em Itapuã. Parte do céu tinha a cor da água de coco e o cheiro de dendê, que subia das panelas invisíveis que o tempo cozinha nas esquinas da Bahia.
Na varanda de uma casa antiga, rede esticada, mesa com duas cadeiras de madeira, garrafa de cachaça, copinhos com restinho da dose tomada, folhas de papel amarelado, violão encostado na parede. Ao fundo, o sons do mar, se misturavam com sussurros do vento e dos batuques ao longe.
Jorge Amado já estava lá sentado, descalço, camisa branca de linho, calça de algodão, camisa aberta no peito, com um sorriso de quem conhece todos os segredos de Gabriela e só conta se tiver uma boa cachaça um charuto enrolado nas cochas morena baiana e um bom silêncio para ouvir.
Gil chegou logo depois, com o violão debaixo do braço, roupa leve, colorida, e o axé correndo solto nas veias. Sentou-se, tirou os óculos escuros, olhou pro mar com a fala melódica e ritmada. disse...
- Ô... Jorge, que cheiro bom tem essa varanda... Cheiro de livro que foi temperado no dendê, a nossa Bahia é um livro que canta.
- Você sabia que as minhas personagens têm cheiro?, disse Jorge.
- E as minhas canções têm pele, respondeu Gil.
Jorge respondeu com uma gargalhada baiana, com a voz lenta, grave e afetuosa... - É você chegou no tempo certo, Gil... A hora em que o céu fica do tom da alma da Bahia.
- A Bahia é partitura viva, meu velho. Se a gente escutar bem, ela canta.
Jorge ergue o copo e diz... - E se desafinar é com orgulho. Como Gabriela quando ri na cozinha... ou Quincas Berro D’Água voltando pra mais um samba depois da morte.
Gil ri e dedilha um acorde leve no violão... Cantando baixinho... “Refazenda, meu pai, refazenda... No dendê, no candomblé, no pão de cada dia...”
- Menino, você canta como se estivesse benzendo as palavras... E pega um papel amarelado do bolso... - Um dia desses escrevi algumas coisa sobre os meninos do cais...
- Os meninos dos seus Capitães da Areia? Que andavam descalços como correndo na beira do cais como quem corre atrás do tempo. Aqueles moleques têm o mesmo balanço dos meus compassos... Pedro Bala podia muito bem ter dançado no Expresso 2222.
Jorge (brinca) - Mas só se não cobrasse passagem.
Ambos riem. olhando o mar, Jorge acende um charuto invisível, como se desenhasse o ar com a fumaça. A luz vai caindo para um tom mais escuro de azul.
- Sabe, Jorge... Eu canto pra lembrar que ser livre também é um ato de fé... e também é uma forma de resistência.
Gil dedilhou um acorde e cantou, "Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá... Quase sussurrando, canta um trecho no tom suave... “Aquele Abraço”.... “Alô alô, Terezinha... aquele abraço... Alô Bahia de todos os santos, encantos e axés... aquele abraço ”
Gil... Isso aí não é música, não. É carta de amor pro Brasil !!.
Eles brindam...
O som do mar aumenta. Falavam de tudo, de Exu a Caetano, de Ilhéus a Londres. A conversa era como um enredo de carnaval místico de escola de samba, passando por histórias de coronéis, poesias africanas e protestos invisíveis.
Ficaram ali até a noite chegar devagarinho, com seus orixás discretos, suas marés escuras e suas estrelas tímidas.
Jorge mexe o copo com cachaça, enquanto Gil afina o violão, entre um acarajé e um acorde, escrevem juntos nesse encontro imaginário na Bahia eterna da memória... "Cacau & Candomblé"... O evangelho pagão da alegria.
E quando o silêncio chegou, não foi silêncio... Foi a genialidade respirando saudades.
Por Alfredo Guilherme
8 comentários:
A sua escrita possui uma cadência poética e sensorial, transportando o leitor para essa cena imaginária nos dias atuais onde Jorge Amado e Gilberto Gil compartilham conversas, música e literatura. BOM DEMAIS FOI LER ESSA CRÔNICA !!!!!
A cenas do texto é quase cinematográfica, cheia de imagens que despertam a nossa memória e provocam a nossa imaginação o cheiro do dendê, o balanço do mar, a cadência da fala baiana e o toque do violão. Valeu caro amigo !!!!
O que se revela no seu texto é mais do que um simples diálogo ficcional, mas uma homenagem à força da cultura popular e da arte como instrumento de identidade. Você me deixou com saudades da minha terra. kkkkk
Muito Massa esse texto...
Essa crônica transborda afeto e nostalgia, criando uma atmosfera mágica, onde a literatura e a música se entrelaçam como partes de um mesmo tecido.
👏👏👏👏👏👏
Você como sempre genial em tudo que escreve. Amei
Você como sempre genial em tudo que escreve. Amei
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