O palco repousa em um vazio solene.
No centro, um piano de cauda banhado por luz azulada, como se o próprio tempo o iluminasse.
Uma névoa suave paira no ar... como um véu de música suspenso.
Surge...
Uma mulher à frente do seu tempo. "Chiquinha Gonzaga" que caminha como quem desliza sobre partituras, a saia longa ondulando ao compasso dos passos.
Senta em frete ao piano, fecha os olhos e toca, abrindo um portal no tempo. Uma valsa se desenha no improviso.
Chiquinha respira fundo, sussurrando ao piano... - Há notas que só aparecem quando o silêncio confia na gente.
A melodia muda. No canto escuro do palco, Elis Regina se manifesta como um relâmpago. Os cabelos curtos, e seus gestos elétricos.
Entre elas, o tempo se curva. Nunca se viram, mas se reconhecem.
Elis, com os olhos marejados de lembranças, se aproxima sem pressa...
- Essa valsa, Chiquinha… Tem cheiro de jasmim e coragem. Você a compôs ou nasceu da saudade?
Chiquinha responde, o olhar perdido na música... - Foi a saudade que me compôs. Cada tecla que toquei foi um gesto que me negaram. Você canta como quem morde o mundo e chora depois… Cantou “Como Nossos Pais” e nunca mais saiu do peito do brasileiro.
- Eu canto pra não explodir. Canto pra não calar. Minha garganta tem a força de um rio represado… Você, Chiquinha, é eterna. “Ó Abre Alas” abriu caminhos pra mim, e eu nem sabia.
Chiquinha sorri, com ternura e dor. Abrir alas dói. Tive que partir pra não ser partida. Fui mulher, compositora, instrumentista, regente. A primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Mas o que me deu mais orgulho foi ser abolicionista… O que para muitos era meu pecado.
Elis, os olhos cheios de emoção... - Você era sinfonia num tempo que só aceitava marcha. E ainda assim… fez carnaval. Você é piano com alma de tamborim.
Ela continua, embalando as palavras... - Me contaram que você enfrentou o mundo pra tocar sua música. Abandonou marido, rompeu com a família… Pra viver de arte!
- E me chamaram de desavergonhada, subversiva, mulher sem modos. Mas fiz meu carnaval… E você? Cantou com o coração exposto e deixou seus fãs de peito aberto… Você sempre foi trovão com voz de colibri. Na sua boca, Elis, até a lágrima tem afinação.
- Ah, Chiquinha… O palco era minha trincheira. Eu cantava como quem grita. E gritei tanto, que às vezes a alma se despedaçava.
- É o preço de ser mulher e artista. A gente canta, mas o mundo quer nos calar. Compus marchas para libertar escravos, quando ninguém achava que música era lugar de protesto.
- É sempre assim. Quando a mulher ergue a voz, dizem que é histeria. Quando é homem, chamam de gênio revolucionário.
Elis ri, emocionada... - Mas a gente não se calou, Chiquinha. Você tocou piano nos becos, eu samba na censura. Fizemos da música um ato de resistência.
O silêncio se torna melodia. Elis se aproxima do piano. Chiquinha cede espaço, como quem passa um bastão invisível.
Elis toca uma nota suave... - Às vezes eu achava que morri cedo demais… Mas aqui, contigo, parece que cheguei no tempo certo. Talvez o tempo seja só uma clave diferente.
Chiquinha lança o olhar para longe... - O tempo é uma pauta onde Deus compõe em segredo. A gente só decifra quando morre cantando.
Elas tocam e cantam. A melodia nasce entre modinhas e tempestades, partituras escondidas no peito. Com o piano ainda vibrando, Chiquinha murmura...
- Nos encontramos na música, Elis… Assim ninguém nos julga, só nos escuta.
Elis responde com voz de luz... - E quem escuta… nos ama.
Os olhares se perdem nas poltronas vazias na plateia, e decidem caminhar juntas em silencio por alguns instantes, pelo palco, poetizando pensamentos e quando voltam até o piano. Chiquinha inicia uma nova melodia. Elis improvisa um canto entre samba, valsa e lamento. Um tom maior, pra desafinar menos na tristeza e soar mais bonito na lembrança.
A luz do palco se apaga lentamente, enquanto o som do piano continua… tocado por mãos invisíveis.
Uma última nota ecoa, longa como um abraço entre elas. Não foi só um encontro. Foi uma celebração.
Por Alfredo Guilherme