Era uma esquina como qualquer outra, dessas que a gente frequenta sem pressa quando a cidade já resolveu dormir. O asfalto ainda úmido refletia a luz amarela dos postes que pintava a calçada com sombras longas, e o mundo parecia andar mais devagar, e havia um silêncio tão cuidadoso que até os passos pareciam pedir licença.
Estabelecendo um cenário contemplativo, onde o tempo parecia permitir que o passado se infiltrasse no presente.
E então, foi como se o tempo se curvasse.
Eu lembrei. De nós dois... Do seu inebriante perfume, naquela noite em que a cidade parecia conspirar a favor, silenciosa, cúmplice, suspensa entre promessas.
Ali estávamos. Entre risos baixos, conversas partidas pela metade, aquele jeito desajeitado de quem ainda não sabe se pode pegar na mão ou só o olhar. Estávamos ali. Tenho certeza. Lembro do tom da sua voz, da curva do seu corpo, até do seu sorriso, de como você me olhava como se o mundo coubesse inteiro entre uma palavra e outra. E isso bastava.
Mas juro, juro mesmo, que não me lembro com que roupa estávamos vestidos.
Talvez porque, naquela noite, tudo que vestíamos era o sentimento. Era desejo disfarçado de timidez. Era o frio na barriga travestido de coragem. Era o arrepio que nascia do lado de dentro.
A rua continua lá. A esquina também. A música deve estar perdida em algum vinil velho, e o perfume talvez nem exista mais. Mas quem sabe, numa outra noite qualquer, tudo volte como se nunca tivesse ido.
Incrível... Só não lembro da roupa que vestíamos.
Talvez seja isso que o cérebro faz com os detalhes, guarda o essencial e joga o resto na caixa de "tanto faz".
Mas será que o essencial é mesmo o que a gente lembra, ou o que a gente esquece devagar?
Por Alfredo Guilherme