sexta-feira, 13 de junho de 2025

Encontro poético : Duas Almas…

 


     O palco repousa em um vazio solene.
    No centro, um piano de cauda banhado por luz azulada, como se o próprio tempo o iluminasse.       
    Uma névoa suave paira no ar... como um véu de música suspenso.

    Surge...
    Uma mulher à frente do seu tempo. "Chiquinha Gonzaga" que caminha como quem desliza sobre partituras, a saia longa ondulando ao compasso dos passos. 
     Senta em frete ao piano, fecha os olhos e toca, abrindo um portal no tempo. Uma valsa se desenha no improviso.

    Chiquinha respira fundo, sussurrando ao piano...  - Há notas que só aparecem quando o silêncio confia na gente.

    A melodia muda. No canto escuro do palco, Elis Regina se manifesta como um relâmpago. Os cabelos curtos, e seus gestos elétricos.
    Entre elas, o tempo se curva. Nunca se viram, mas se reconhecem.

    Elis, com os olhos marejados de lembranças, se aproxima sem pressa...  
     - Essa valsa, Chiquinha… Tem cheiro de jasmim e coragem. Você a compôs ou nasceu da saudade?

    Chiquinha responde, o olhar perdido na música... - Foi a saudade que me compôs. Cada tecla que toquei foi um gesto que me negaram. Você canta como quem morde o mundo e chora depois… Cantou “Como Nossos Pais” e nunca mais saiu do peito do brasileiro.

    - Eu canto pra não explodir. Canto pra não calar. Minha garganta tem a força de um rio represado… Você, Chiquinha, é eterna. “Ó Abre Alas” abriu caminhos pra mim, e eu nem sabia.

    Chiquinha sorri, com ternura e dor. Abrir alas dói. Tive que partir pra não ser partida. Fui mulher, compositora, instrumentista, regente. A primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Mas o que me deu mais orgulho foi ser abolicionista… O que para muitos era meu pecado.

    Elis, os olhos cheios de emoção...  - Você era sinfonia num tempo que só aceitava marcha. E ainda assim… fez carnaval. Você é piano com alma de tamborim.

    Ela continua, embalando as palavras... - Me contaram que você enfrentou o mundo pra tocar sua música. Abandonou marido, rompeu com a família… Pra viver de arte!

    - E me chamaram de desavergonhada, subversiva, mulher sem modos. Mas fiz meu carnaval… E você? Cantou com o coração exposto e deixou seus fãs de peito aberto… Você sempre foi trovão com voz de colibri. Na sua boca, Elis, até a lágrima tem afinação.

    - Ah, Chiquinha… O palco era minha trincheira. Eu cantava como quem grita. E gritei tanto, que às vezes a alma se despedaçava.

    - É o preço de ser mulher e artista. A gente canta, mas o mundo quer nos calar. Compus marchas para libertar escravos, quando ninguém achava que música era lugar de protesto.

    - É sempre assim. Quando a mulher ergue a voz, dizem que é histeria. Quando é homem, chamam de gênio revolucionário.

    Elis ri, emocionada...  - Mas a gente não se calou, Chiquinha. Você tocou piano nos becos, eu samba na censura. Fizemos da música um ato de resistência.

    O silêncio se torna melodia. Elis se aproxima do piano. Chiquinha cede espaço, como quem passa um bastão invisível.

    Elis toca uma nota suave... - Às vezes eu achava que morri cedo demais… Mas aqui, contigo, parece que cheguei no tempo certo. Talvez o tempo seja só uma clave diferente.

    Chiquinha lança o olhar para longe... - O tempo é uma pauta onde Deus compõe em segredo. A gente só decifra quando morre cantando.

    Elas tocam e cantam. A melodia nasce entre modinhas e tempestades, partituras escondidas no peito. Com o piano ainda vibrando, Chiquinha murmura... 

     - Nos encontramos na música, Elis… Assim ninguém nos julga, só nos escuta.
     Elis responde com voz de luz... - E quem escuta… nos ama.

    Os olhares se perdem nas poltronas vazias na plateia, e decidem caminhar juntas em silencio por alguns instantes, pelo palco, poetizando pensamentos e quando voltam até o piano. Chiquinha inicia uma nova melodia. Elis improvisa um canto entre samba, valsa e lamento. Um tom maior, pra desafinar menos na tristeza e soar mais bonito na lembrança.

    A luz do palco se apaga lentamente, enquanto o som do piano continua… tocado por mãos invisíveis.

   Uma última nota ecoa, longa como um abraço entre elas. Não foi só um encontro. Foi uma celebração.


     Por Alfredo Guilherme

9 comentários:

Anônimo disse...

Foi mais que um encontro, foi uma homenagem e um lembrete de que a arte sempre encontra formas de sobreviver. Magnífico!

Anônimo disse...

O trecho em que Elis afirma que "O palco era minha trincheira" é especialmente marcante, porque resume o compromisso visceral da artista com sua arte e sua verdade. O mesmo pode ser dito de Chiquinha, que desafiou normas sociais para viver como queria. Caro amigo parabéns pelo lindo e poético texto

Anônimo disse...

VALEU !!!!!! uma homenagem e um lembrete de que a arte sempre encontra formas de sobreviver. Magnífico!

Anônimo disse...

👏👏 simplesmente magnífico!

Anônimo disse...

A cena evocada no palco não é apenas um diálogo entre duas artistas, mas um encontro entre tempos distintos que se reconhecem e se abraçam. adorei seu texto poético encantador....

Anônimo disse...

A construção do texto valoriza não apenas a genialidade musical das duas, mas também o peso de suas trajetórias como mulheres que enfrentaram o mundo para fazer arte. Alfredo vc me emocionou cara !!!!!

Anônimo disse...

Que texto poderoso vc foi sensível! Na narrativa criou um encontro impossível, mas poeticamente inevitável, entre duas figuras que marcaram a história da música brasileira: Chiquinha Gonzaga e Elis Regina.

Anônimo disse...

Eu li vivendo como se fosse uma peça teatral espetacular esse seu texto

Anônimo disse...

A história delas se entrelaça no texto com uma melancolia bela, mas também com a força de quem nunca se calou.