quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Um mergulho pra dentro da escrita…

     Se o livro não te levar para dentro dele, ele te arrasta para o imaginário, apurando a sensibilidade você vai pelo entorno da inspiração, que te levará a povoar a história, buscando nela imagens dos lugares, e de personagens, que fazem parte da história, infelizmente já faz parte da nossa insensatez basicamente deixar em momentos da nossa vida de ter a proximidade com a leitura, é impensável, deixar pra lá, o que pode te levar até um horizonte inimaginável, tudo fica diferente, em relação à vida.

       Eu me recordo que certa vez ao ler um livro, cujo autor, era o principal personagem, José Pescador, a história tem o seu início na bela cidade de Ilhéus, no Nordeste brasileiro, e o desfecho final, na pacata ilha ao sul da Bahia, um lugar de beleza nativa exuberante, e não foi à toa que foi batizada pelos índios como “Camandatuba”, nome em Tupi-guarani, que significa grande quantidade de "Pé de cabra", em referência à uma planta, que cobre a maioria das praias da região.

       Algo sem uma explicação aparente, aconteceu comigo. Durante a leitura me peguei caminhando para dentro do livro, vivendo detalhes da história, junto com o autor da obra,  que ia me mostrando em detalhes, o percurso feito pelos personagens em locais e ruas, com seus majestosos casarões coloniais com telhas de barro, grandes beirais e varandas repletas de plantas, algumas árvores sombreando lindos jardins florido, casarões estes que na maioria eram habitados pelas famílias de ricos fazendeiros do cacau, na Cidade de Ilhéus.

      Fora do Continente, na Ilha coberta pela Mata Atlântica, segui caminhando ao lado dele por entre o verde vivo da vegetação do mangue, um lugar, que se respira quase um ar selvagem até chegarmos à beira de um mar exuberante que se postava na nossa frente, onde a brisa do mar parecia sugar o calor escaldante, deixando mais confortável o calor que atravessava a nossa pele, e foi nesse local, que boa parte do livro, foi escrito, segundo o autor, ele escreveu de costas para o mar, perguntei qual teria sido o motivo? Ele falou, - Você já prestou atenção na beleza desta Ilha? Nos tons da cor azulada e esverdeada deste mar? Você acha que eu ia conseguir me concentrar em alguma coisa? Eu tenho que me afastar do mar, senão meu amigo. Ele me rouba por completo. Tudo que eu escrevi é parte da realidade, no caso aconteceu com um olhar imaginário, no passado e no presente, especialmente na fachada de um certo casarão, com a janela fechada. Talvez eu tenha visto ela ser aberta por uma linda jovem de cabelos negros brilhantes, cheia de vida, que tinha estampado no rosto, alegria de viver, e um brilho no olhar, de pertencimento ao nosso amor.

      Em seguida caminhamos em silêncio, deixando as nossas pegadas pela areia, como se ele se importasse com alguma coisa obrigatória para me mostrar, seguimos na direção de um velho barco de pescador praticamente destruído pelo tempo, parecia já estar um bom tempo encalhado na areia, antes de sentarmos na beirada do barco ele deu um longo e trêmulo suspiro, arregalou os olhos, em seguida bateu com a palma da mão pausadamente, por três vezes, na madeira da lateral do barco, onde ainda se conseguia ler o nome da embarcação, e disse...

       - Esse era o meu ganha pão, comecei com uma jangada que pertenceu ao meu avô, logo foi aposentada por motivos de segurança, esse barco, por muitos anos me ajudou no sustento da minha família...

       Fui ficando mais e mais, emocionado, mais ainda, ao olhar na direção do mar, naquele momento único, em que o Astro Rei, compartilhava um belíssimo Pôr do Sol, com o previlégio da vista ao fundo do Continente, essa visão me levou além do imaginário. Aí ele me disse... 

        - Sabia que a maré, tem influência também nos seres humanos? . Eu respondi, que eu imaginava que sim.

       Em seguida o seu olhar parecia perdido no horizonte, neste momento veio no meu pensamento uma frase que ele escreveu no livro: "Eu passo do passado para o futuro, por debaixo d'água, mas nunca vou te esquecer". Uma nítida referência ao dia que partiu o seu grande amor, Tânia, era como todos à conheciam na cidade. Eu achei bastante coerente a frase. Depois de alguns instantes, José Pescador, autor, escritor e poeta...  Falou… Eu senti, muita emoção na voz dele, após contraiu o maxilar, e engolir seco a sua voz saiu quase embargada.

      - O nosso amor foi intenso de mais, eu filho de pescador acabei seguindo os passos do meu pai, já imaginou, um simples pescador cascudo, namorar com uma filha de um militar, em plena Ditadura, sabendo de antemão, que um dia ela iria me deixar, para dar continuidade aos estudos em Salvador, até terminar a Faculdade, foi algo doloroso para nós. A separação foi cercada por rumores dos mais sombrios pela cidade, supunham que foi intencional, o velho Coronel era famoso pela dureza com a sua prole, mas, o que eu não desejava aconteceu, acordei numa certa manhã de um sábado chuvoso e recebi a notícia pelos meus pais, a minha garganta fechou na hora, tentei ir ao encontro dela no píer, mas já era tarde, fiquei ali parado olhando para o nada por um tempão, depois foi inevitável, eu cai em lágrimas quentes e silenciosas, ela me contou em uma única carta que eu recebi, ela dizia que travessou pelo Canal, olhando para a água com o rosto molhados de lágrimas, e a cabeça latejava junto com as batidas descompassadas do coração, eu tenho a certeza que uma voz no fundo na mente dela dizia, que o que ela fizera sem ao menos se despedir, seria impossível de consertar.

       - Eu continuei aqui sem exigências empregatícias, pescando, nadando a onde o mar não dava mais pé, sempre olhando do mar, para essa praia tentando imaginar o meu amanhã, ao mesmo tempo tentando imaginar como eu poderia um dia encontrar o anel que ela ganhou de presente dos pais quando fez quinze anos, e acabou perdendo em uma das muitas vezes que tínhamos que sair correndo por entre as plantas da restinga, para se esconder atrás das pedras logo ali à frente, sempre que pessoas conhecidas dos pais dela, davam as caras aqui na praia, éramos tão jovens e inconsequentes, e até certo ponto inocentes em relação ao sexo, nos despachávamos de prazer nadando nesse marzão de Deus, Tânia sempre foi uma menina tímida, recatada e amante da natureza, tendo um carinho todo especial com os animais marinhos, acompanhava a temporada com fidelidade da desova das tartarugas ao longo do nosso litoral, eu não imaginava que na pureza da nossa adolescência o peso que tinha o nosso amor, nossos corpos se atraíram com total liberdade, entregávamos os nossos corpos ao mar, onde a gente vinha na maior parte das vezes  ao cair da tarde já quase para anoitecer, com a praia deserta tomávamos banho na maior parte das vezes nus, depois fazíamos amor na branca areia, ficávamos parecendo mais dois bifes à milanesa, com areia por todas as partes do nosso corpo, e sempre fazíamos a saideira, amávamos novamente dentro da água, sem nenhum barulho além do vento e das ondas do mar, que coreografava os movimentos dos nossos corpos, desejosos de prazer, e com os hormônios saindo pelos poros, como resistir. Se o Padre Inácio soubesse que fugíamos de fininho da igreja para darmos uns amasso e beijos de língua, no escurinho atrás da igreja enquanto ele celebrava a Santa Missa, ele com certeza, teria nos excomungados.

      - 60 anos já se passaram, desde a sua partida, mas ficou registrado na minha mente a imagem da linda jovem, que um dia teve a pele bronzeada pelas pinceladas dos raios do sol, desfilava o seu corpo milimetricamente perfeito, causando inveja nas outras adolescentes da ilha. Inesperadamente um belo dia, isso já alguns anos atrás, quando eu já pensava em procurar um terapeuta para que ele me ajudasse a esquecer todas essas lembranças, se espalhou pela cidade a notícia, que eu esperei por anos, ela estava com os dois pés na ilha, tinha acabado de fazer a travessia do Canal, vinda do Continente, já viúva e sem ter tido filhos, veio para que os seus últimos dias de vida, fossem aqui na ilha, aí é aquela velha história, quem não morre envelhece, mas as cicatrizes continuam internas, a seguir imagina você, o que aconteceu? Bem, eu vou deixar para você descobrir, que tal você terminar de ler o livro ?.

      Olhou para mim, dando um sorriso grato, depois levantando uma das sobrancelhas, continuou falando meio que, profetizando...  

      - O amor, mesmo com o passar do tempo tem o seu merecimento e nos dá essa possibilidade de ter o distanciamento bem perto do nosso pensamento. Aproximação da saudade é como um elemento próprio, de ter saudade, de si mesmo.

      - Olhando ainda para mim, agora com ar sério, indagou...               

      - O que você tem para falar agora…

      Ainda vivendo a emoção do momento eu falei.

      - Eu, ainda quero ter tempo para envelhecer mais, para continuar a exaltar o gosto da vida pela leitura...

      Ele balançou a cabeça pegou um cigarro acendeu e deu uma longa tragada e quando a nicotina chegou a sua corrente sanguínea ele falou... 

      - É bem por aí o caminho… - Muito bom...!! 

      Foi um momento de pertencimento com a história, uma espécie de hipnose literária, as palavras e imagens que surgiram tão naturalmente na minha mente se juntando a voz calma e serena do autor nos meus ouvidos, foi surreal… Isso só pode acontecer quando nos envolvemos de corpo e alma na leitura de um livro, isso também poderá acontecer com você…

 

Texto Alfredo Guilherme

 

 

 

2 comentários:

Dalidaki disse...

Meu maravilhoso escritor.
Que lindo o que você escreveu .
A verdade é que sempre vivi dentro dos seus textos.me tornando, também, uma personagem de sua história. Maravilhoso tudo que você escreve e seus temas sempre impressionam pela sua capacidade de expressão. A história desse pescador, pessoa simples, humilde e muito amor no coração, não tenho
palavras pra descrever tanta beleza
vivida e tanto amor. Através de seus
blogs passei a ser mais sensível, ter mais amor e valorizar mais a vida. Parabéns continue sempre com suas escritas inigualáveis
Você é o maior escritor da atualidade.. Beijo no coração


Amor disse...

Lindo seu texto meu querido.O amor vivido com intensidade unindo dois corpos e os corações, quando se desfaz os laços com a distância, deve ser muito sofrido .
Mas comparando outra situação vivida de um grande amor que teve o desfecho de não ter vivido corpo a corpo de sentir o tesão e não ter o orgasmo com a pessoa amada ,ali coladinhos,talvez tenha a mesma sensação de sofrimento.
Linda história de amor .
Sempre maravilhoso podermos ler e refletir o enredo de cada história, e como vivemos as emoções do outro em cada página virada.Sensacional entrarmos na história como fizéssemos parte dela.
Parabéns, gostaria de te dar um abraço bem forte para parabenizá-lo.
Bjs amigo.Até o próximo.